A revista do crioulo doido

por André Rafaini Lopes

É feio começar uma resenha elogiando os aspectos técnicos da publicação? Bah… Duvido que o leitor – ou os autores – de uma revista que tem um luchador na capa seja tão sensível a ponto de se incomodar com uma indelicadeza dessas. Então aqui vai: SAMBA, HQ feita por oito desenhistas e três escritores, tem um acabamento como raras vezes vi em edições independentes ou não. Belíssimas cores. Belíssimo papel. Pode falar palavrão no Facada, não pode? Pode: puta acabamento!

Bão, depois de justificar o jabá que o Sr. William Expresso da Expresso Gráfica forneceu ao escriba, vamos à programação normal. Samba é uma bela compilação de histórias (pô, se eu não dedicasse um “belo” aos autores, iria ser linchado ou teria que devolver meu exemplar!), então vamos por partes:

Capa – Tá lá: Samba, el luchador. O homem. O mito. A lenda, em toda sua suada glória. Gabriel Góes é responsável pela pintura. Não dou para crítico de pinturas que não sejam de pequenos quadros sucedidos por outros em temas lineares, sequencialmente. Só posso então elogiar o talento, porque a capa ficou muito bonita e marcante. Vale a reflexão: quantos quadrinistas também não são ótimos artistas plásticos, não? Se não me engano, o Dahmer também pinta, bem como o Kipper (saudade da Escola de Deusinhos) e Orlando.

Daqui pra frente, então, vão comentários por autores, ok?

André Valente escreve um engraçado manual sobre como um menino pode, digamos, satisfazer seus instintos mais primitivos e proporcionar prazer a si mesmo em cinco lições. O ponto alto são as variações das posições manuais para a execução do ato sexual solitário: o “Spock” e “A Surpresinha de Gengibre”.

Biu é o biógrafo do homem, do mito e da lenda. É ele quem acompanha os últimos suspiros do homem, do mito e da lenda. Talvez porque conheço essa figuraça, mas Biu é um dos poucos escritores que ao ler seu texto é como se o próprio estivesse falando dentro da sua cabeça. Outro assim, só o João Ubaldo Ribeiro. Não sei se já escrevi sobre isso, mas aqui foi de novo.

Eduardo Belga ilustra o que parece ser o fim do monstro que matou o Capitão Átomo (de Gabriel Mesquita). Em amplos painéis que tomam a página toda, Belga disseca uma espécie de Godzilla em ritual xamânico. Apesar da referência pop de Bob Esponja e da estrela-do-mar Patrick em franco processo de digestão, o traço me lembrou Geiger e Goya. E ele também usa uma figura de linguagem que outro desenhista da Samba usou e me deixou intrigado. Mais sobre o assunto, pule para o verbete, Gabriel Góes.

Gabriel Góes é o desenhista que mais páginas têm na revista. Suas histórias vão de uma perseguição policial a uma ficção-científica digna de Métal Hurlant. Não deixo de associar Epílogo ao mote do conto Cartas a uma senhorita em Paris, de Cortázar – e aqui está o ponto que o liga a Belga. Na história do escritor argentino, o personagem vomita coelhinhos. Góes ilustra um personagem que vomita um pássaro e que, por sua vez, vomita um diamante. Por mais nojento que seja, a metáfora é interessantíssima e linda à sua maneira. Na última página de Belga, uma figura semelhante é usada: o monstro expele o Bob Esponja que expele o Patrick que expele uma ostra que expele uma pérola. Será uma necessidade dos artistas mostrar que no fundo de seus argumentos mais pesados e traços mais brutos há uma mensagem bonita? Não sei, mas que faz pensar, isso faz.

Gabriel Mesquita faz o Capitão Átomo, uma inspirada HQ da Era de Ouro dos Quadrinhos. A coisa toda é tão bem feita que até agora não consegui descobrir se o material é original ou se é uma paródia sobre alguma revista já publicada – segundo o Universo HQ, o personagem original é uma criação de Joe Gill, um quadrinista que faleceu em 2007, aos 87 anos. As cores reticuladas lembram demais as pulps e os primeiros gibis impressos coloridos por essas bandas. O único ponto dissonante, claro, é o triste fim do personagem principal, que é literalmente frito pelo monstro que depena e devora mocinhas indefesas.

LTG é o segundo artista mais frequente de Samba. Desenhista de traço solto, LTG segue uma linha urbana de quadrinhos, mais o menos a Escola dos gêmeos Moon e Bá. Os personagens são possíveis. As conversas são possíveis. Você pode encontrá-los nas ruas, nas baladas. Particularmente, gosto muito desse tipo de HQ. A última capa também é dele e quem aparece novamente é o monstro aquático que matou o Capitão Átomo e foi dissecado pelo Belga. Nota pessoal: interessante como à primeira leitura esses temas recorrentes não apareceram!

Luda traz as cores mais vistosas em suas aquarelas – chutei a técnica (Luda, me desculpe se não for!). Acho que não tem outra palavra para definir a estilo dela a não ser “burlesca” (Tá, Luda, é quase o título da sua história, mas foi o que me ocorreu… aliás, foi uma palavra que me ficou de uma conversa com Roberta AR exatamente sobre… sim, você!). A quadrinista faz um desfile de pinups apetitosas (em todos os sentidos), exceto por um(a).

Mateus Gandara ataca outro daqueles temas recorrentes e retoma o beduíno e a paisagem desértica de Rockets de Gabriel Góes (aquela que parece Métal Hurlant). Só que Gandara faz uma conexão ainda mais clara com o dia-a-dia das cidades. Nota pessoal II – o retorno: CAZZO! Claro! Brasília é o deserto… lembre-se da pág. 47 do LTG! Cara, o Samba tem camadas e mais camadas!

Roberta AR narra um conto de Florinda, uma espécie de neomaso (googlei já) Macabéa. Passista frustrada que dedica uma vida ao sonho de se tornar mulata do sargentelli. Talvez pela formação de jornalista, Roberta é substantiva o suficiente para que não se apague a criatividade daqueles que tiram histórias e personagens do chapéu. Coisa que, pessoalmente, acredito que perdi entre uma matéria e um artigo, o que é um tanto triste.

Stêvz desenha os dois quadrinhos que me fizeram entender toda a temática da revista. Esqueça figuras de linguagem do realismo fantástico e o monstro aquático. O insight veio da penúltima frase do one man band que inveja o sapateador Alfredinho (seu alter-ego): “Seria trágico se não fosse patético!” Claro! Estava lá na capa o tempo todo! O que Samba traz é o embate entre essas duas forças: a tragédia e a comédia. Essa história deveria encerrar o álbum. Um twist ending digno de Shyamalan (em seus áureos tempos). Genial!

Tiago Lacerda é dono de um traço sexy. Ou terei me deixado levar pelas beldades que dominam duas das suas três páginas? Fiquei com vontade de ler histórias mais longas de Lacerda.

Vitor Brandt ilustra ou desenha junto com Gabriel Góes a segunda revista dentro de Samba (a primeira é Capitão Átomo, você não leu a notinha sobre o Gabriel Mesquita?). Billy Soco é um Menino Super-Poderoso from hell que enfrenta um mecha do Homem de Ferro do Mal. A história parece ter sido desenhada por um menino de 12 anos, mas que não deixa nada a desejar em ritmo e estilo. E aqui de novo o pega entre o trágico e o cômico, mais na técnica do que no enredo.

Samba, enfim, é só (tudo) isso.

2 comentários em “A revista do crioulo doido

  1. Pô, Stêvz não tinha outro jeito! Ou era isso, ou botar todo mundo no mesmo balaio! Parabéns pela revista!

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